Internet, pais infantis e banalidades
Quando constrangem filhos, expondo suas imagens e diálogos íntimos, pais deseducam, espetacularizam a vida e apagam limites entre público e privado
Online sempre. Status: Disponível. Perfil: Público. É assim que a maioria das pessoas se apresenta ao mundo, hoje. Vivemos conectados às redes sociais trocando informações, opiniões, vídeos, fotos, intimidades – desde que acordamos até a hora de dormir. Não seria demasiado afirmar que elas têm sido nossas companhias mais assíduas. Daí que o espaço virtual tem tomado dimensões públicas que merecem atenção.
A espetacularização da vida cotidiana nas redes exige uma reflexão sobre a forma como temos educado as crianças para o uso dessa ambiência comunicacional. Será que os ditos nativos digitais (que já nasceram no império das novas tecnologias) estão de fato preparados emocionalmente para o uso dos meios de comunicação? Conseguem ter o devido cuidado e respeito aos limites entre o que deve ser público e privado? Será que, como adultos cuidadores, temos nos comportado de forma ética nas redes e dado exemplos de autocuidado?
A dependência que as pessoas, principalmente crianças e jovens têm demonstrado em relação aos aparatos tecnológicos é de causar preocupação. Basta observar passageiros embarcando ou chegando a um voo que pode durar menos de 50 minutos. Todos com seus smartphones a postos, trocando as últimas informações urgentíssimas antes de ficar offline por apenas 40 minutos, já que a conexão é proibida durante a viagem. Se antes fumantes “viciados” davam a última tragada em seus cigarros logo antes de entrar no avião e assim que chegavam, hoje quem ocupa esse lugar de dependência oral é, sem dúvida, o aparelho celular. Ouvi também inúmeros relatos de mães desesperadas porque os filhos dizem não saber viver sequer por algumas horas sem se relacionar com a tecnologia – não se sentiriam pertencentes, ou mesmo vivos offline.
Preocupa a forma como temos narrado incessantemente nossas vidas nas redes sociais – compartilhando o que comemos, o filme a que assistimos, nossos sentimentos pelo aniversariante do dia – e, principalmente, como temos exposto crianças com fotos de cada passo delas e a reprodução de diálogos privados que compartilhamos com eles. Será que as crianças, se pudessem opinar, gostariam do que temos feito com suas imagens e com idiossincrasias privadas? Estariam de acordo com a exposição de seus segredos? Acredito que não.
Crianças e jovens estão numa fase especial de construção de identidade e sentem-se violados quando expostos. Quem nunca viu uma criança constrangida, ou no mínimo envergonhada, quando contamos a familiares seu novo feito ou conquista? Quem se lembra dos antigos diários de adolescentes trancados a sete chaves para que o pai ou a mãe não descobrissem seu novo amor? Pois nos dias de hoje o que temos visto é sim, exposição – sem medida e desrespeitosa – experimentada por adultos e pelos jovens que os têm como exemplos.
Por isso, não me surpreende que crianças e adolescentes veiculem imagens suas expondo intimidades, como tem sido verificado por pais e educadores, ou até mesmo o fato de postarem informações e segredos de amigos, que deveriam ser de foro privado. Com a falta de conhecimento dos códigos de comportamento nas redes sociais, crianças e jovens chegam a publicar fatos ou boatos sérios sobre outros, o cyberbullying, levando-os até mesmo ao suicídio, como num caso recente.
Nas últimas semanas, alguns fatos específicos envolvendo o uso das redes sociais chamaram minha atenção. A foto de uma criança de menos de dois anos numa maca dentro de uma ambulância, rumo à emergência pediátrica, foi postada pela mãe aflita. O início da lua de mel de um casal que estava em crise foi compartilhado pelos noivos. O novo corte de cabelo e sua explicação do porquê da mudança de visual deu início à semana de postagens de uma administradora – seguido de milhões de posts sobre a morte súbita de Eduardo Campos e a empatia de todos com o sentimento de perda daquela família.
Como boa psicóloga, comecei a me questionar sobre a necessidade que os sujeitos contemporâneos têm tido de ser paparazzi de si mesmos. Por que razão necessitamos estar conectados em momentos que a conexão deveria ser muito mais privada do que pública? O que leva uma mãe, sem julgamentos aqui, a postar uma foto do nenê na ambulância ou um casal a compartilhar todos os passeios, restaurantes e imagens experimentadas numa viagem, enquanto deveriam estar conectados com si mesmos? O que nos leva a fazer autorretratos ou selfies e mostrar a todos? Mais, a quem interessaria saber por que resolvemos cortar o cabelo?
É fato que o interesse pela vida alheia é inerente ao humano, mas quando levado às raias da loucura pode acometer o sujeito com o voyeurismo. Nos dias atuais, quando a conectividade e o consumo pautam nossa socialização e a de crianças e jovens, perdemos a dimensão dos limites entre público e privado, e alimentam o voyeurismo.
Não quero aqui demonizar a tecnologia e o uso das redes sociais – até porque acho que os inúmeros avanços tecnológicos alcançados por nós, humanos, trouxeram muitos benefícios, como a agilidade na troca de informações, a possibilidade de conexão com o mundo e muito mais… Mas, isso não quer dizer que não devamos repensar a forma como temos nos relacionado com esses aparatos e espaços virtuais.
Quando compartilhamos um texto político ou reflexivo, ele consegue poucas curtidas; mas quando postamos a foto de nossos filhos no escorrega da praça pública ou a nova palavrinha aprendida, obtemos milhares de comentários. Curtir deixou de ser, hoje, um estado de espírito, convertendo-se em gesto automatizado e consumido nas redes – o que sugere uma doença social. O silêncio ou a capacidade de se ausentar parecem ter dado lugar a uma onipresença exaustiva e vazia. Perdemos a noção não somente dos limites entre público e privado como do que é prioritário. Tudo parece ser urgente, quando o mais urgente é talvez a necessidade de reflexão e estranhamento de certos comportamentos atuais que tomamos como normais e corriqueiros.
Sem capacidade crítica formada, crianças e jovens não ficam fora dessa lógica e têm consumido cada vez mais diferentes mídias, muitas vezes de forma simultânea: ouvem rádio enquanto navegam na internet, assistem à televisão lendo gibis, participam de jogos interativos no computador e ao mesmo tempo falam ao telefone ou se utilizam de outros gadgets digitais. É a geração Google, Web 2.0 ou “do Milênio”, considerada ‘multitarefa’.[1]
Pesquisa recente da comScore, divulgada em janeiro de 2014, aponta que o número de crianças e adolescentes nas redes sociais brasileiras aumentou 118% entre 2012 e 2013, ou seja, de 4,3 milhões para 9,4 milhões. Segundo o levantamento, esses usuários passam mais de 18 horas mensais conectados. A pesquisa apontou também que, entre os jovens usuários de internet, 70% possuem perfil em alguma rede social. O Facebook, teoricamente, só aceita usuários de ao menos 13 anos de idade. Nada impede, porém, um usuário de até 12 anos cadastrar-se com idade que não é a sua. Dados da pesquisa Kids Online, de 2012, sugerem que esta prática é inclusive bastante comum: apenas 27% dos entrevistados de 9 a 16 anos declaram informar corretamente a sua idade nas redes sociais. A maioria absoluta (57%) afirmou optar por idade falsa.
Embora “nativas digitais”, crianças e jovens ainda precisam de mediação no uso das tecnologias, e de bons modelos e serem seguidos. Apesar de sua destreza no domínio concreto da tecnologia, não têm a maturidade necessária para compreender todo o conteúdo acessado e como devem comportar-se nesse novo ambiente virtual. Não foi à toa que o aplicativo Secret (que estimula o compartilhamento anônimo de segredos com conhecidos) gerou tanta polêmica recentemente. Acabou sendo proibido no Brasil, devido a sérios casos de bullying entre jovens.
Em nosso tempo, o ambiente virtual é um espaço para exercitar a cidadania e o convívio social difuso, e por isso as dimensões de liberdade e segurança precisam ser muito bem expostas às crianças. A educação para uma cidadania digital se faz urgente, para que a apropriação desse espaço se dê de forma mais ética. Mas, para que isso aconteça, nós adultos devemos primeiro repensar a relação que temos estabelecido com as redes sociais. Precisamos nos desconectar para ter mais tempo de concentração no que é urgente e importante – mais tempo de escuta, de reflexão, encontro e mediação com crianças e jovens. Porque as melhores coisas do mundo, parodiando o excelente filme da Lais Bodansky sobre adolescer na contemporaneidade, devem sem dúvida permanecer privadas ou ser narradas com a devida calma. Curtir, compartilhar e comentar tudo, 24 horas por dia, não são obrigações e ser seguidas. Já educar nossos filhos, nativos digitais, para o uso adequado das redes sociais é, sim, nossa responsabilidade.
Texto originalmente em Outras Palavras.