O desafio de lidar com os traumas na volta às aulas
Conteúdos afetivos serão tão ou mais importantes quanto os matemáticos, físicos ou linguísticos
Um semestre se passou desde o simbólico fechamento dos portões das escolas de todo o país. E o que era para ser 15 dias de férias antecipadas, para conter o contágio do novo coronavírus, se transformou num novo e cansativo modo de vida para a sociedade em geral. Foram meses de muita aprendizagem e reinvenção, principalmente para a educação, mas também de muitas perdas do que só pode ser experimentado no chão da escola — lugar de encontro, afeto e conflito, imprescindíveis para o exercício cívico. Nossos incansáveis professores aprenderam novas ferramentas, lançando-se em desafios digitais e inaugurando uma nova forma de ensinar e aprender remotamente, mas acima de tudo de se relacionar com seus alunos, em parceria com as famílias.
O que, inicialmente, pareceu ser um convite à pausa, ao recolhimento e à reflexão, rapidamente se transformou em excesso de informações, lives e trabalho remoto, somados às novas tarefas domésticas e protocolos de higiene. Estranhos tempos estes que vivemos, quando o que nos parecia ser normal deu lugar a esta nova realidade, permeada por lacunas, como as deixadas pela tecnologia em nossos encontros via Zoom. E eu, como não poderia deixar de ser, penso nas crianças e adolescentes e principalmente nas cicatrizes que levarão, inscritas em sua subjetividade, deste novo normal. Sem dúvida, sairão desta experiência transformados e mais maduros. Pelo excesso de convívio com seus familiares e, por mais estranho que possa parecer, pelo excesso de ausências, de seus pares, professores ou avós. Alguns gritam, perdem o sono, brigam ou choram (sem querer mais participar das aulas on-line), enquanto outros simplesmente silenciam.
Parece-me que o medo e a ansiedade que nos acompanharam no início da quarentena têm cedido lugar à saudade. As miudezas e delicadezas do cotidiano — que antes nos eram imperceptíveis — agora, nesta espécie de exílio coletivo que experimentamos, se agigantam como um grande vazio silencioso. A imposição do afastamento social roubou de todos, e principalmente de nossos pequenos e jovens, seu gesto espontâneo, desde a mão na boca e nos olhos até o abraço ou o pega-pega entre amigos. Os rostos das crianças e adolescentes da quarentena de 2020 escondem seus sorrisos (por trás das máscaras usadas como proteção) e nos ostentam um olhar mais temeroso para o que o futuro lhes reserva. Hoje, perguntam menos sobre o vírus e a morte e mais sobre a vida que anseiam resgatar. Têm esperança na reabertura das escolas (que é a sua segunda casa) para reencontrar neste espaço seus amigos, amados professores e a aprendizagem sem ser em quadradinhos.
Estejamos cientes de que quando todas as escolas reabrirem seus portões, o que entendemos como espaço escolar será, sem dúvida, diferente, pelo menos até passar a pandemia. Recreios, carga horária, conteúdos, avaliações, calendário, número de alunos em circulação pelos espaços serão revistos, assim como os objetivos de aprendizagem. Cada escola está preparando seus novos protocolos, seguindo as orientações governamentais, para garantir a saúde e segurança de toda a comunidade escolar.
Texto originalmente publicado em O Globo em 14/10/2020.