Para enfrentar o bullying, em tempos sombrios
Como defender relações colaborativas e fraternas, quando crianças aprendem que para ser precisam ter… as melhores notas, lábios rosados, o último modelo de smartphone e corpos esculpidos?
No último 7 de abril foi aprovado pelo Senado projeto de lei que estabelece a data como Dia Nacional de Combate ao Bullying e à violência na escola. Mesmo dia, curiosamente, em que ouvi o relato de uma mãe cujo filho, de 5 anos, havia chegado em casa mordido por colegas pela primeira vez.
Respondendo às perguntas da mãe, o pequeno contou, assustado, que o colega tinha dito que não queria brincar com ele porque era menor e não sabia ler. E que não fez nada porque ficou com medo. Depois desatou a chorar, dizendo que não queria mais ser pequeno ou sequer ir à escola.
A mãe, aflita, falou que teve vontade de dizer ao filho que, quando alguém o mordesse, mordesse de volta e também deixasse uma marca no colega. Mas sabia que isso não seria a melhor saída para o problema, principalmente neste momento em que imperam a violência, o preconceito e a falta de empatia e se clama, urgentemente, por uma educação voltada à cultura de paz.
Ser mãe e pai não é tarefa fácil para os mais experientes, que dirá para as marinheiras de primeira viagem que sofrem com cada mordida e arranhão. A árdua e maravilhosa tarefa de educar para o exercício da cidadania futura, pautada da ética, empatia e consciência comunitária, nos faz refletir sobre os próprios atos perante os outros e exercitar a coerência, diariamente. Também eu, muitas vezes, fico sem saber como agir, como mãe, quando o assunto envolve os limites estabelecidos na socialização das crianças – já que mordidas, apelidos e certas brincadeiras podem deixar marcas profundas nos pais e nas crianças.
O filme sueco-dinamarquês Hævnen (“vingança”, em dinamarquês), no Brasil denominado Em um mundo melhor – dirigido por Susanne Brie e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2011 – , nos mostra, de forma belíssima, que o limite entre agressor e agredido é muito tênue. E que, se queremos construir uma sociedade mais humana, devemos refletir sobre nossos próprios atos desrespeitosos, preconceituosos e vingativos ao educar as crianças.
Quão responsáveis somos por atos que, como enfatiza o filme, assumem proporções tão intensas em nível global quanto em nível pessoal? A reflexão moral é imprescindível e urgente. E deve começar com a simples resposta que daremos a nossos filhos quando chegarem da escola depois de ter sofrido uma agressão, assim como o tipo de reação que teremos ao perceber que nosso filho está sendo injusto com os outros.
A discussão sobre bullying está quente. O tema é pauta nas escolas, famílias e sociedade em geral. Especialistas são chamados a dar palestras, depoimentos e receitas de bolo sobre o que fazer em situações de conflito recorrentes entre crianças. As próprias “vítimas” infantis têm protestado sobre discriminações sofridas por colegas – como no recente caso da menina de óculos que viralizou nas redes. E os pais estão cada vez mais preocupados sobre como instruir seus filhos a respeito do tema.
Mas, o que é bullying? Como definir esse comportamento? Como, principalmente, falar com crianças sobre isso? O termo vem do bully, em inglês, que significa amedrontar, intimidar, ameaçar. Qualquer brincadeira ou comportamento que intimide, agrida, ofenda ou exclua, de forma sistemática e recorrente, pode ser rotulado como bullying e até ter consequências legais para os envolvidos – o que mostra que brincadeiras entre crianças podem tornar-se um caso sério. E aí me pergunto: estaremos responsabilizando as novas gerações por conflitos que fazem parte da convivência humana? Ou conflitos rotineiros na socialização das crianças ganharam hoje novos contornos, que os tornam mais difíceis de enfrentar?
O “fenômeno”, na verdade, não é novidade. É sabido que crianças e jovens podem ser bem cruéis no exercício da socialização – até porque estão em fase de formação de valores, tentando entender seus limites e os dos outros. E isso vale principalmente quando falamos de crianças pequenas, ainda sem as habilidades e ferramentas necessárias para expressar com clareza seus sentimentos. É dos adultos, portanto, a responsabilidade de iniciar os pequenos na vida civil, já que eles não conseguem refletir sobre as consequências de suas condutas e não têm formada a capacidade de colocar-se no lugar do outro. A empatia, tão em voga, ainda é para eles algo distante.
É por isso que cabe aos adultos, na família e na escola, educar as crianças para a vida em sociedade, mediando conflitos e principalmente passando valores morais que incentivem relações mais cooperativas e fraternas do que competitivas e discriminatórias. Isso vale ainda mais nos sombrios tempos consumistas que vivemos, quando as crianças aprendem, desde cedo, que para ser precisam ter… as melhores notas, lábios rosados, o último modelo de smartphone, corpos esculpidos – e que ser diferente está fora de moda.
Combate à intimidação sistemática
A lei nº 13.185/2015, que institui em todo o Brasil o Programa de Combate à Intimidação Sistemática, conhecida também como bullying, em vigor desde o início de 2016, traz uma definição legal para a expressão “intimidação sistemática” – que passa por questões verbais, morais, sexuais, psicológicas, sociais, físicas, materiais e virtuais.
Para além da definição, a lei cria uma política nacional de combate à prática do bullying e assegura atendimento psicológico às vítimas, reiterando as formas e o dever de diligência que escolas (clubes e agremiações também estão elencados na lei) devem ter diante de situações que indiquem haver qualquer tipo de intimidação sistemática contra crianças e adolescentes. Também o cyberbullying, aquele que acontece nas redes sociais, entra no Programa de Combate à Intimidação Sistemática, já que pode ter consequências morais piores do que as do bullying praticado na “vida real” – pois no ambiente virtual as crianças sentem-se ainda mais desamparadas.
A previsão legal é importante, como bem colocou Guilherme Perisse em artigo recente, pois às vezes as crianças escondem o bullying dos adultos, que, por seu turno e não raramente, erram ao tratá-lo como algo normal. Para o advogado do Instituto Alana, com a nova lei fica claro que as escolas, agremiações e clubes não podem mais ignorar as agressões. Da mesma forma, devem promover a conscientização da comunidade escolar, inclusive para orientá-la sobre como agir diante das agressões.
O assunto é espinhoso e difícil, sem dúvida. A saída, a meu ver, está na educação, como prevê a nova legislação. E nesse ponto a lei é mais do que clara, ao dizer que se deve: (i) Capacitar docentes e equipes pedagógicas para a implementação das ações de discussão, prevenção, orientação e solução do problema. (ii) Instituir práticas de conduta e orientação de pais, familiares e responsáveis diante da identificação de vítimas e agressores e (iii) Evitar, tanto quanto possível, a punição dos agressores, privilegiando mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva responsabilização e a mudança de comportamento hostil com a finalidade de se promover a cidadania, a capacidade empática e o respeito a terceiros, nos marcos de uma cultura de paz e tolerância mútua.
Contudo, a prática não é tão simples como as palavras escritas. E no meu entendimento precisamos, antes de mais nada, rever nossos próprios atos discriminatórios, os mais triviais e rotineiros. Como querer que as atuais e futuras gerações sejam amáveis, conciliadoras e isentas de preconceitos, se temos sido o pior modelo? É nossa responsabilidade ensinar nossos filhos que tolerância, respeito, delicadeza e empatia são valores que devemos carregar por onde andamos – e que isso começa no recreio da escola, na pracinha do bairro, nos comentários aos posts nas redes sociais e, principalmente, dentro de casa.
Uma educação inclusiva deve prevalecer para que as diferenças sexuais, etárias, étnicas e sociais não sejam causa de discriminação, e sim exaltadas como sinônimo da grandeza e beleza do mundo.
Texto publicado em Outras Palavras.