Para não reduzir crianças a consumidores
STJ classifica publicidade infantil como abusiva e rechaça esforço de empresas para “fidelizar” seres humanos desde cedo, associando-os a marcas e produtos
Nesta semana, quando celebramos 25 anos do Código de Defesa do Consumidor, uma notícia nos faz acreditar que a transformação é não apenas possível, como está próxima. Em 10 de março, pela primeira vez o abuso da publicidade voltada ao público infantil chegou a um tribunal superior e foi analisado em seu mérito. Por decisão unânime, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), conhecido por ser o Tribunal da Cidadania, julgou abusiva uma publicidade de biscoitos da Bauducco.
A vitória é resultado de uma longa trajetória. Em 1983, a ONU reconheceu os direitos do consumidor e tornou a causa internacionalmente legítima. No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor, um dos mais completos do mundo, foi publicado em 11.09.1990, mas só entrou em vigência em 11.03.1991, três anos após a promultação da Constituição Federal – uma resposta do poder público aos anseios da sociedade em relação aos avanços desgovernados da atual sociedade de consumo.
Data também do início dos anos 90, segundo alguns autores, a crise conceitual da infância – quando as crianças, que eram tidas como um vir-a-ser e precisavam ser preparadas para o mundo adulto, foram elevadas pelo mercado ao status de consumidoras, antes mesmo de estar aptas ao exercício pleno de sua cidadania. Vale destacar que a criança nem sempre foi vista da mesma forma no decorrer da História. A sociedade medieval, até aproximadamente o século XII, não costumava nem retratar as crianças – indicando que elas pareciam não fazer parte do espaço social. A infância era vista como um período de transição, logo ultrapassado.
De lá para cá, o cenário mudou. A criança perdeu o anonimato e tornou-se foco das atenções do mercado, que passou a enxergá-la como consumidora final, além de alguém com forte influência sobre amigos e família. É o que indica pesquisa da Interscience, segundo a qual elas influenciam 80% dos processos decisórios das compras da família, funcionando como promotoras de venda dentro de casa (1). Nesse contexto é que ganhou força a publicidade dirigida às crianças.
Hoje, a publicidade infantil não só invadiu a web, as escolas e os parques, como também passou a endereçar à criança mensagens sobre objetos do universo adulto, somadas às de produtos infantis. Além de porta de entrada para influenciar os hábitos de consumo da família, o mercado considera que, quanto mais cedo uma criança é fidelizada a uma marca, mais chances há de ela manter-se fiel por toda a vida. Assim, vendem-se para elas coisas como carros e seguros de vida, roubando-lhes a infância – fase essencial de desenvolvimento da capacidade crítica, intelectual e afetiva do ser humano.
Cabem aqui algumas perguntas. Como podem as crianças, antes mesmo de autorizadas a trabalhar ou compreender totalmente a persuasão contida nas mensagens publicitárias, exercer relações de consumo que envolvem diretamente trocas monetárias? Ou ser alvo de mensagens que necessitam de compreensão crítica e capacidade de abstração, que a maioria das crianças ainda não têm formadas até cerca de doze anos? Não podem. Tanto que o próprio Código de Defesa do Consumidor Brasileiro previu protegê-las, como fica evidente no Art. 37 ao afirmar que “é proibida toda publicidade enganosa ou abusiva”, e explicar, no parágrafo §2º, que “é abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais ou seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. (…)”.
Vale destacar a declaração de voto do ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, na decisão que considerou a publicidade infantil abusiva:
“O julgamento de hoje é histórico e serve para toda a indústria alimentícia. O STJ está dizendo: acabou e ponto final. Temos publicidade abusiva duas vezes: por ser dirigida à criança e de produtos alimentícios. Não se trata de paternalismo sufocante nem moralismo demais, é o contrário: significa reconhecer que a autoridade para decidir sobre a dieta dos filhos é dos pais. E nenhuma empresa comercial e nem mesmo outras que não tenham interesse comercial direto têm o direito constitucional ou legal assegurado de tolher a autoridade e bom senso dos pais. Este acórdão recoloca a autoridade nos pais”.
O resultado de 5×0 na decisão do STJ é fruto de ação movida pelo Ministério Público de São Paulo contra a Pandurata, dona da marca Bauducco. A ação, de 2007, teve origem numa denúncia do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana contra promoção de venda casada em que cinco embalagens do pacote de biscoitos, cada um ao custo de R$ 5, davam direito a um brinde. O processo foi julgado também pela ministra Assussete Magalhães, presidente da Segunda Turma do STJ, que considerou “um caso típico de publicidade abusiva e de venda casada, igualmente vedada pelo Código de Defesa do Consumidor, numa situação mais grave por ter como público-alvo a criança”. Se a Pandurata recorrer, o processo seguirá para o STF (Superior Tribunal Federal).
Desde já, contudo, a decisão é um marco a ser comemorado, uma vez que poderá influenciar novas decisões para casos semelhantes que cheguem a esse tribunal superior e certamente influenciará tribunais estaduais, juízes de 1ª instância e quem mais tem autoridade para fiscalizar ou coibir os abusos publicitários.
Esperamos ainda que influencie as decisões das empresas que atuam no país, para que cumpram a legislação vigente e repensem a comunicação dirigida às crianças.
A conquista é fruto do trabalho de gente comprometida com a causa, mas também de uma sociedade que não tolera mais abusos, fruto de um momento histórico muito particular em nosso país em que a sociedade – e aí incluem-se as empresas – estão tendo de pensar mais na ética e na sustentabilidade, e menos no lucro. Vale lembrar também que, há duas semanas, a Abir (Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes) anunciou que, a partir de agora, recomendará às marcas de refrigerantes que façam publicidade apenas para o público acima de 12 anos, e deixará de veicular propaganda em programas de tevê que tenham mais de 35% do público abaixo dessa faixa etária.
Como observou o advogado Pedro Hartung, do Instituto Alana, as empresas e as pessoas que nelas trabalham não podem mais se furtar à obrigação de cumprir a lei, mesmo que ela represente uma contrariedade aos seus interesses e uma suposta ameaça a seus ganhos econômicos. Ele explica: “Diz-se suposta ameaça, pois as normas existentes, inclusive a Resolução 163 do Conanda, não regulam a veiculação comercial de determinado produto ou serviço, mas sim seu direcionamento. Portanto, qualquer produto que hoje é massivamente direcionado às crianças – como macarrões instantâneos, frangos empanados, brinquedos ou até mesmo seguros ou carros –, continuará a ter publicidade, mas eticamente redirecionada aos adultos.”
Nesses 15 de março, Dia Internacional dos Direito do Consumidor, façamos então um brinde. Que essa decisão do STJ seja a primeira de muitas outras que honrem as crianças – não só como sujeitos de direitos, mas também como consumidoras. Façamos valer o que já está previsto na legislação.
Texto publicado em Outras Palavras.