Lais Fontenelle

Tema(s): Pandemia

Sobre 120 dias em quarentena e a perda do gesto espontâneo

Cicatrizes do isolamento social de 2020 em nossas crianças e adolescentes e o retorno à escola.

Saudade, substantivo feminino: Sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar, ou à ausência de experiências prazerosas já vividas.

Mais de 100 dias se passaram… E o que eram para ser 15 dias de férias antecipadas, para conter o contágio do novo Coronavírus, se transformaram num novo e cansativo modo de vida para a sociedade em geral, ainda sem data certa para acabar. Para a grande maioria da população, foram três meses de muita aprendizagem e reinvenção, mas, também, de muitas perdas. Alguns perderam entes queridos, trabalho, saúde mental, a convivência com aqueles que amamos e a liberdade de ir e vir. Não tenho dúvidas de que, para todos, essa experiência de isolamento social produziu não só memórias, mas também traumas que podem ser coletivizados. Todos experimentamos medo, ansiedade e angústia frente aos alarmantes números de infectados e de óbitos somados às incertezas apresentadas nos dados, ou na falta de resposta de especialistas frente ao novo vírus. As feridas estão, a cada semana que passa, mais abertas, seja por um excesso de convívio forçado ou pela ausência do contato presencial.

O que, inicialmente, parecia ser um convite à pausa, ao recolhimento e à reflexão, rapidamente, se transformou em excesso de informações, Lives e trabalho remoto somados às novas tarefas e protocolos de higiene. Estranhos tempos estes que vivemos, quando o que nos parecia ser normal deu lugar a uma nova realidade, permeada por lacunas, como as deixadas pela tecnologia em nossos encontros via Zoom. E eu, como não poderia deixar de ser, sigo pensando nas crianças e adolescentes e, principalmente, nas cicatrizes que levarão, inscritas em sua subjetividade, deste novo normal. Sem dúvida, sairão desta experiência transformados e mais maduros. Pelo excesso de convívio com seus pais e, por mais estranho que possa parecer, pelo excesso de ausências – de seus pares, professores e avós. Alguns gritam, perdem o sono ou choram (sem querer participar das aulas online), enquanto outros, simplesmente, silenciam.

Parece-me que o medo e a ansiedade que nos acompanhavam no início da quarentena têm cedido lugar à saudade. As miudezas e delicadezas do cotidiano, que antes nos eram imperceptíveis e que, agora, nesta espécie de exílio coletivo que experimentamos, se agigantam como um grande vazio silencioso. Compartilhamos a falta da liberdade, do barulho e do coletivo, mas acima de tudo do gesto espontâneo, tão característico da infância. A imposição do afastamento social roubou de todos, e principalmente de nossos pequenos e jovens, seu gesto espontâneo, desde a mão na boca e nos olhos até o abraço ou o pega-pega entre amigos. Os rostos das crianças e adolescentes da quarentena de 2020 escondem seus sorrisos (por trás das máscaras usadas como proteção) e nos ostentam um olhar mais temeroso para o que o futuro lhes reserva. Hoje, perguntam menos sobre o vírus e a morte e mais sobre a vida que anseiam resgatar. Têm esperança na reabertura das escolas (que é a sua segunda casa) para reencontrar esse espaço de encontro, de aprendizagem e acima de tudo de troca e afeto.

Minha filha de 8 anos me fez um singelo pedido esses dias. Queria comer chiclete. Disse que fazia três meses que não sentia o cheiro de tutti-frutti ou ouvia a bola estourar. Entendi que a falta do chiclete, geralmente comprado na rua, me falava da enorme saudade da avó, que geralmente traz um chiclete em sua bolsa ou o compra quando a busca na escola, e das belezas contidas no livre ir e vir pela cidade – sem máscara ou álcool gel. Com os olhos cheios de lágrimas, liguei para farmácia e inclui o chiclete na compra da semana tendo a certeza de que, nesta quarentena, minha menina (assim como tantas outras crianças e jovens) entendeu o significado desse substantivo feminino, estritamente brasileiro, que é a saudade.

Que nós, adultos cuidadores, estejamos prontos para ajudar as crianças a resgatar seu gesto espontâneo quando tudo passar. E para isso, a parceria família/escola é, mais uma vez, essencial. O retorno ao espaço escolar, sem dúvida, não será como o de longas férias e deverá trazer novos protocolos de higiene e até de socialização. Precisamos estar preparados para cuidar das lacunas não só acadêmicas, mas também emocionais de nossos alunos. O retorno deve garantir segurança acima de tudo mas precisa acolher as cicatrizes emocinais das crianças e jovens e as experiências vividas nesta pandemia que, também, deixarão boas memórias e saudades do que foi possível experimentar em família.

Texto originalmente publicado em Medium.