Um documentário sobre o brincar que resiste
Filme convida a olhar brincadeiras como atividade que vincula, criar cultura e significados, promove aprendizagens e elaboração de conflitos
Em 28 de maio, comemorou-se mundialmente o Brincar, dia internacional que chama atenção para este gesto infantil. Porém, fomos nós adultos que recebemos um presente: as brincadeiras das crianças de nosso vasto país, poeticamente registradas pelas lentes do casal Renata Meirelles e David Reeks no documentário Território do Brincar, em cartaz.
O filme é fruto de uma viagem itinerante de dois anos pelo Brasil, eles com seus dois filhos, registrando e pesquisando essas lindas imagens de brincadeiras infantis. Mais uma produção da Maria Farinha em parceria com Instituto Alana — que evidencia questões da infância e nos obriga a outro olhar sobre as crianças e seus direitos – a começar pelo direito ao brincar.
Conheci Renata Meirelles lutando por uma infância livre de consumismo. Com ela dividi pensamentos, emoções e palestras para educadores e pais. Eu geralmente tratava da dureza do consumo excessivo na infância e dos malefícios da publicidade dirigida ao público menor de 12 anos. Já ela trazia a beleza do brincar em toda sua potência – como contraponto a essa realidade consumista vivida pelas crianças hoje, mais especificamente em grandes centros urbanos.
Esta grande educadora, junto com seu marido, mais uma vez me emocionou ao trazer para as telas do cinema algo a que nossos olhos e ouvidos andam desacostumados: o silêncio das crianças brincando e se expressando livremente. Esse registro do brincar universal de meninos e meninas brasileiras, com pés no chão em diferentes regiões do país, contam histórias de nossa cultura e infância. Crianças negras, indígenas, brancas de regiões e classes sociais distintas unidas pela linguagem comum: o brincar como atividade séria que serve para nos vincular, criar cultura e significados, além de aprendizagens e elaboração de conflitos.
Na tela, só crianças – adultos não entram na brincadeira. Ao longo de 90 minutos, embalados pela excepcional trilha do grupo instrumental Uakti, nós adultos somos convidados a ser espectadores da infância e mergulhar no sagrado território do brincar, onde os quatro elementos da natureza ditam as regras da brincadeira. Chuva que se transforma em lama. Vento que leva barquinhos. Fogo que aquece histórias e cozinha alimentos e afetos compartilhados por crianças. Terra que vira palco de desenhos com gravetos.
O documentário passeia pela geografia dos gestos e movimentos das crianças revelando narrativas repletas de conquistas, medos, descobertas e crescimento ligados ao universo infantil. Mostra que brincar, mais do que simples atividade prazerosa, é território importante onde é possível imaginar, solucionar problemas, aprender, exercitar cidadania sozinho ou no coletivo e exercitar comportamentos futuros.
Na maior parte do tempo, as crianças encontram-se em grupo e labutam juntas: são cozinheiras, engenheiras, caçadoras, construtoras ou cuidadoras, evidenciando que nós, humanos, somos seres sociais – apesar da virtualidade atual – e que o brincar, em toda sua sutileza, nos vincula com outros no aqui e agora, mas, também, remotamente no tempo pela criação de cultura. Retalhos, tampinhas de garrafas, restos de brinquedos, pedras, cordas, galhos, barro. Tudo serve à imaginação das crianças brincantes num território onde a regra é criar: casas, jangadas, bonecas ou simplesmente relações.
A sensível lente do americano David Reeks acompanhou ao longo desses dois anos de viagem a construção de caminhões com restos de madeira e corda, jangadas feitas de isopor e pano ou casas feitas de lençol abrigando famílias, além de rituais de batismo e casamento – o que nos mostra que sempre, nessa vida, o processo deveria importar mais que o resultado. As crianças do filme denunciam isso o tempo todo e mostram como são valentes e integradas à natureza – diferentemente do que pensam as mães contemporâneas: correm soltas com pés no chão e não se gripam com facilidade, comem animais e não têm alergia. Operam facas com a mesma destreza que uma tela touchscreen. E se relacionam com a natureza como parte dela, sem qualquer medo aparente. Mas que, quando a noite cai, reúnem-se a contar historias para superar suas fantasias e angústias, juntas, ao redor do fogo.
O filme nos descortina um mundo bem distante daquele vivido em parquinhos emborrachados supostamente protegidos, dos brinquedos eletrônicos, dos parques temáticos, das bonecas colecionáveis, da televisão, Ipad, celular. Nada disso aparece. Até a universal bola de futebol perde seu protagonismo nesse retrato do brincar – o que mostra ser tudo possível nesse território. Só não pode é ficar parado ou desistir. Se a casa cai é posta em pé, calma e lentamente. Se a roupa da boneca rasga, é costurada novamente. E, nesses pequenos gestos das crianças, vemos um contraponto à relação estabelecida com os brinquedos de plástico ou eletrônicos – feitos, atualmente, com obsolescência programada pelo mercado para o rápido desinteresse e descarte das crianças – e ainda mais rápida reposição dos pais. O importante é o processo, o conserto, a solução, o coletivo do ato de brincar.
Ao privilegiar o registro de comunidades mais carentes e afastadas de nosso país, além de geograficamente distantes do frenesi e consumismo das metrópoles, o documentário tem outro tempo. O tempo da descoberta, da contemplação, da infância. É uma viagem lúdica e poética ao universo infantil. Consegue, assim, resgatar memórias de formas ancestrais de brincar que se perpetuam na atualidade.
O filme é um convite ao exercício da espontaneidade e da imaginação, da persistência, resiliência e aceitação. Um pedido de resgate da criança que existe em cada um de nós ao fomentar o brincar como atividade livre e estruturante. Aqueles desencantados pelo mundo rápido e urgente do consumo podem achar o filme silencioso ou lento por demais. E podem até construir um discurso cético de ver na fita uma atmosfera exageradamente bela e livre de violência, impossível de ser reproduzida nos grandes centros urbanos ou condomínios fechados e shoppings centers onde cresce a maioria das crianças hoje. Mas, para que servem as utopias senão para continuarmos a sonhar com mundos melhores… Vale assistir ao filme que, em breve, estará disponível gratuitamente aqui. Aqui, você pode ver o trailer .
Texto publicado em Outras Palavras.